Publicado por Fernanda Barros 11/01/2014
Heberson,
Nem sei como te dizer isso. Tateio pelas palavras
certas há horas – elas me escapam. Claro que você já foi avisado e até leu no
noticiário local, mas eu queria pedir desculpas. O governo do Estado do
Amazonas questionou o valor da sua indenização. É, eles acham R$ 170 mil um
valor muito alto pelos quase três anos em que você passou na cadeia, acusado de
um estupro que não cometeu. Querem pechinchar pelo vírus HIV que infectou o seu
corpo após os abusos sofridos atrás das grades. Seu sofrimento está “caro
demais” para os cofres públicos. Como se algum dinheiro no mundo pudesse apagar
o que você viveu.
Até hoje, como naquele dia em que
te entrevistei, sinto minhas tripas se revirarem. Lembro de você contando que
tinha 23 anos e trabalhava como ajudante de pedreiro na periferia de Manaus
quando o crime aconteceu. Uma menina de nove anos, filha de vizinhos, havia
sido arrastada para o quintal durante a noite e violentada. A família o acusou
de tamanha brutalidade e a delegada expediu um mandado de prisão provisória
para investigar o caso. Você, que não tinha antecedentes criminais. Você, que
divergia completamente do retrato-falado. Você, que estava em outro lado da
cidade naquele horário. Mas você é pobre, Heberson. Pobres são presas fáceis
para “solucionar o caso” e atender o clamor popular. As vozes que te xingaram
ainda ecoam?
“Eu morri quando me fizeram pagar
pelo que não fiz”, você disse, me matando um pouco também sem saber. Em tese,
por lei, você não poderia ficar mais de quatro meses aguardando julgamento na
cadeia. Sua mãe, desesperada, pegou empréstimos para bancar advogados
particulares. Mesmo sem comida em casa, a dor no estômago era por justiça. Não
dava para contar com a escassa quantidade de defensores públicos no país
(embora, depois, a doutora Ilmair Faria tenha salvo o seu destino). Enquanto
ela se rebelava aqui fora, você se resignava com os constantes abusos sexuais
de que era vítima. Alegar inocência sempre foi a sua única arma. De que forma
lhe deram o diagnóstico de Aids?
Sabe, querido, eu gostaria de ter
presenciado o parecer do juiz na audiência que demorou dois anos e sete meses
para acontecer. Deve ter sido um discurso bonito. Juízes usam frases empoladas,
especialmente para se desculpar em nome do Estado por um erro irreparável. Onde
estava a sua cabeça no momento em que ele declarou que você estava “livre”?
Porque eu me pergunto como alguém pode supor que liberta o outro de suas
memórias, de suas dores, de sua desesperança, de uma doença incurável. Você
continua preso. Tanto que passou anos sem conseguir emprego por causa do
preconceito e perambulou pelas ruas sob o efeito de qualquer droga que
anestesiasse a realidade. Livre para ser um morto-vivo.
Na sala do meu apartamento, há um
troféu de direitos humanos que ganhei por trazer à tona sua história. Olho para
ele e enxergo a minha impotência. E os ossos saltados da sua pele. Com vinte
quilos a menos, as suas roupas parecem frouxas demais – quanto você perdeu além
do peso corpóreo? Imagino se a Procuradoria Geral do Estado (PGE), que negou o
pedido da sua indenização, sabe das suas constantes internações decorrentes da
baixa imunidade. Será que alguém abriu a porta da sua geladeira e descobriu
que, muitas vezes, você passa um dia inteiro tendo se alimentado de um único
ovo? Ou será que eles se restringem a documentos e números?
Não consigo deixar de pensar que
você foi estuprado de novo. Pelas canetas reluzentes de quem toma essas
decisões descabidas. Você levou sete anos para ressuscitar a sua determinação e
cobrar os seus direitos. Em parte, motivado pelo apoio das 23 mil pessoas que
aderiram a uma campanha virtual pela sua história. Toda semana recebo mensagens
de gente querendo saber sua situação, se oferecendo para pagar uma cesta básica
ou dar assistência jurídica. Recentemente, um professor criou um grupo que
mobilizou mais de mil cidadãos para ajudá-lo até com despesas de medicamentos.
Minha última pergunta (eu, que não tenho respostas) é: O que mais nós podemos
fazer por você, já que o Estado não faz?
Que o meu abraço atravesse a
geografia até Manaus.
Sinto muito, querido.
Nathalia Ziemkiewicz
(notíciaagora.net.br)
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