Foto pessoal do matador mostra tatuagem feita 23 dias antes da data do primeiro assassinatoFoto: Tadeu Vilani / Agencia RBS
Enquanto detalhava a
série de assassinatos de taxistas que admitiu ter cometido, Luan Barcelos da Silva, 21 anos,
corrigiu o texto do escrivão de Santana do Livramento que redigia seu
depoimento.
Não gostou do verbo
escolhido pelo policial para narrar um dos seis crimes confessados e pediu a
substituição de palavras.
— Eu não
"atirei". Eu "efetuei um disparo" — repreendeu, durante o
interrogatório na tarde de segunda-feira, na 1ª DP de Livramento.
Como um autor
preciosista com seu roteiro, temia a má interpretação da frase. Não queria que
as pessoas pensassem que ele pudesse ter arremessado a arma em vez de apertar o
gatilho. A minúcia de alguém que atenta para o português na hora de contar como
tirou a vida de seis pessoas, sob o pretexto de conseguir dinheiro para pagar o
aluguel de R$ 1 mil do apartamento onde morava com um amigo no bairro Santa
Cecília, em Porto Alegre, impressionou policiais e advogados que acompanhavam o
interrogatório — e é reveladora de uma mente que todos agora tentam desvendar.
— Ele contou que
matava como quem diz que fumou um cigarro — espantou-se o delegado regional
Eduardo Sant´Anna Finn.
À primeira vista,
nada parece fazer sentido para os vizinhos e familiares que o viram crescer no
bairro de classe média baixa Cohab do Armour, na Fronteira. Até porque ele
próprio descende de uma família de taxistas. O avô era dono de táxi e exerceu a
profissão por mais de 30 anos, assim como seu tio-avô. E o próprio pai, que é
mecânico de motos, chegou a conduzir o táxi da família no turno da noite por
pelo menos um ano, no ponto entre as vias Tamandaré e João Goulart. Luan não
costumava frequentar o local. Mesmo que ele tivesse uma relação distante com o
pai, já que foi criado pelos avós paternos depois de abandonado pela mãe, aos
cinco meses, ninguém entende o que ele poderia ter contra taxistas.
A imagem que todos na
vizinhança guardam é a de um guri festeiro, que gostava de beber, de andar com
seu Chevette com música a todo volume. O perfil de um serial killer parece não
combinar em nada com aquele jovem falante que postava fotos no Facebook em que
aparecia beijando a bochecha da avó, com o desenho de um coração na legenda.
Amigos que recordam dele repartindo colheres de brigadeiro, assistindo Malhação
na TV e dançando em um grupo tradicionalista do bairro durante a adolescência
resistem a acreditar no que os vídeos, as impressões digitais e os depoimentos
insistem em confirmar.
— Era um rapaz
normal, que bebia com os amigos, namorava no colégio, estudava, trabalhava —
resume um vizinho, o técnico em informática Filipe Corrêa Morel, 18 anos.
Carinhoso com a avó
Mas parte dessa
normalidade era mantida com dissimulações. A mentira sobre o curso de Gestão
Imobiliária na Ulbra, que exibia em seu Facebook, foi apenas uma das tantas que
o pseudouniversitário inventou. Apesar de dizer no currículo que apresentava em
busca de emprego na Capital que havia concluído o Ensino Médio na escola
estadual Professor Chaves, em Livramento, os registros da instituição mostram
que o aluno abandonou o colégio em 2010 sem concluir sequer o primeiro ano do
Ensino Médio, depois de repetir por três anos na mesma série, entre 2007 e
2009. O abandono escolar coincide com a data da mudança para Porto Alegre, onde
dizia que trabalhava como corretor de imóveis, embora não tenha habilitação
para isso.
No depoimento aos
policiais também afirmou que dava aula de informática para crianças em Porto
Alegre, quando na verdade estava concluindo um processo de seleção como
vendedor no local, uma semana antes de ser preso. Contou ainda ter passado três
anos no Exército, embora tenha sido expulso após somente oito meses, por uma
soma de infrações, que teriam incluído atrasos e suspeitas de surrupiar objetos
dos colegas.
— Parecia um jovem
sem juízo como outro qualquer, que a gente vê todo o ano — lembra o capitão
Allan Mercês, comandante da Segunda Bateria de Atilharia Antiaérea de
Livramento.
Para impressionar,
gostava de andar de gravata, com uma pastinha de couro, mesmo quando estava de
folga em Livramento. Na Semana Santa, apesar de estar desempregado, colocou
terno completo e ganhou da avó uma carona para procurar um imóvel para "um
antigo cliente" no centro da cidade — que a polícia desconfia nunca ter
existido.
Indiferente com as vítimas
Ao comentar com policiais que a arma havia falhado durante
um dos crimes, reclamou da qualidade do projetil utilizado nas execuções:
"A
munição era uma porcaria, não funcionava"
No fim da tarde de
quarta-feira, 27 de março, voltou para casa, pediu uma jaqueta emprestada ao
avô e saiu para assaltar e matar três taxistas escolhidos aleatoriamente na
madrugada seguinte. Voltou sem que ninguém percebesse nada de diferente em seu
comportamento e, na quinta-feira santa, disse aos avós que precisava retornar a
Porto Alegre — onde mataria mais três taxistas — por causa de um compromisso de
última hora de trabalho.
Aos parentes,
costumava dizer que ganhava "muito bem" em Porto Alegre. Para seu
irmão de 12 anos, filho do segundo relacionamento do pai, a quem presenteou com
um dos celulares roubados dos taxistas, contava que faturava de R$ 4 mil a R$ 5
mil mensais. Mas tudo indica que a realidade era bem menos glamourosa. No
currículo que apresentava, dizia ter sido balconista em uma farmácia e operador
de telemarketing em uma loja de máquinas antes de vender imóveis. Uma das
suspeitas da polícia é de que usaria parte da mesada recebida dos avós, supostamente
para ajudar nos estudos, para financiar seus gastos pessoais na Capital.
— Ele criou um
personagem para ele mesmo e gostava de parecer mais do que era, de aparecer. O
próprio local que ele morava não parece condizente com a renda — analisa o delegado
regional.
Vida na cadeia
Durante o depoimento à polícia, quando advogados disseram
que ele não era obrigado a falar, se não quisesse, Luan respondeu:
"Não me
importo. Eu sei que vou ficar o resto da minha vida na cadeia, então eu vou
falar"
Na escola onde
iniciou o Ensino Médio, ex-professores descrevem Luan como se fosse duas
pessoas diferentes. Dentro de sala de aula, abraçava professores, puxava
assunto, fazia piadinhas:
— Ele sempre colocava
a mão no meu ombro e dizia: eu vou casar com essa veia. Nunca vi ele prejudicar
ninguém — lembra uma ex-professora de português.
Fora da sala de aula,
era conhecido pelo envolvimento em brigas constantes, no recreio e na saída da
escola. Em um dos episódios marcantes, esperou um rapaz de outro colégio com um
taco de basebol na saída do colégio e correu atrás dele, sob o olhar de todos
os alunos. A confusão daquele dia foi dissipada com a chegada da Brigada
Militar. Mas a agressividade não parou por ali. Luan carregava o taco dentro do
porta-malas do seu Chevette e costumava ameaçar desafetos na saída das festas
que frequentava na Fronteira, como nas boates Iguana Club e W Lounge, onde
também era conhecido por bater — e apanhar. Parte das festas era regada a
drogas. Luan confessou à polícia de Livramento ser usuário de esctasy e
maconha, depois de também ter passado pela cocaína, que teria parado de usar.
— Ele colecionava
muitos inimigos por causa desse comportamento brigão. Não era de levar desaforo
pra casa. Uma vez eu disse para a vó dele: qualquer dia, ou ele mata alguém ou
aparece morto — conta um professor da escola.
A avó a quem Luan
chamava de mãe se preocupava, se esforçava, mas ex-professores avaliam que
tinha dificuldade em dar limites para o neto. Preocupados em assegurar tudo de
melhor para o neto, ela e o marido enchiam Luan de mimos. Antes mesmo de ter
idade para dirigir, aos 17 anos, ganhou o primeiro carro — e com ele vieram
suas primeiras infrações, por direção perigosa e falta de habilitação.
Aparentemente, o rapaz mantinha uma boa relação com o avô, que só parou de
dirigir o táxi quando sofreu um AVC, há cerca de oito anos. Com medo de que o
neto passasse frio na viagem a Porto Alegre do dia 28 de março, chegou a tirar
as calças que estava vestindo para dar ao neto, que usava bermudas — retornando
para casa só de cuecas dentro do carro —, sem sonhar que Luan teria qualquer
relação com as mortes de seus ex-colegas, que já assombravam a cidade vizinha
de Rivera, no Uruguai.
Preocupado com a aparência
Luan pediu que os advogados que acompanharam o depoimento
apagassem o perfil dele no Facebook e avisou ao perceber a imprensa:
"Não
quero ser fotografado"
Um dos símbolos da
dubiedade que marca a vida de Luan é a imagem que tatuou em suas costas 23 dias
antes da data do primeiro crime que confessou. Duas asas contornam desde as
espáduas até a lombar, com seu nome no topo. Pintadas de vermelho e preto,
contrastam com a suposta aura angelical que poderiam representar, como um anjo
às avessas.
— Se eu inventasse
essa história, pareceria um absurdo. Mas, às vezes, a realidade supera a ficção
— reflete o delegado Finn, ainda tentando reconstituir as cenas que faltam
neste enredo de horror.
Fonte: Letícia Duarte |
Santana do Livramento | ZERO HORA
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